segunda-feira, janeiro 03, 2005

O Retorno do Além

O Eça e o Pessoa
mandaram chamar o Pessa,
pois, além de ter sido
profissional exemplar
no mundo dos mortais,
estava recém-chegado
e por certo traria nos seus dados
notícias bem actuais.
Os três não pensaram mais
e puseram mãos à obra,
os outros poetas e artistas,
que a tudo assistiam,
ficaram entusiasmados
com tão audaz iniciativa
e, ao irem-se juntando aos primeiros,
começaram o que veio tornar-se
numa legião cultural do Além
que tinha por meta voltar
para uma temporada na Terra
para constatar in loco
as palavras assustadoras
do grande Fernando Pessa.
O Bocage era quem mais gozava
com toda a situação,
Camões olhava e não acreditava
nas histórias que Amália
com ele partilhou
e a confusão aumentou
quando os artistas irmãos
quiseram entrar.
Os colegas brasileiros
também choram a cultura
que a indústria conseguiu matar.
E Drummond pede ao Vinicius
que convide o Gonzaguinha
para que ele continue
escrevendo o que escrevia
quando ainda estava lá.
O Vasco Santana quis ir
e o António Silva também,
o Ary não podia faltar,
nem tão pouco o Tom Jobim.
Finalmente, veio o dia
em que tudo ficou preparado
e as almas dos artistas
fizeram o combinado,
voltaram todos à Terra
para verem como era
o que o Pessa lhes tinha contado.
E assim foi, meus amigos
de tudo aquilo que viram
ficaram horrorizados,
já não havia respeito,
já não havia amor,
não havia a inteligência
e as mediáticas vitórias
logradas pelos humanos
em maratonas ridículas
eram só mais um engano
na longa lista de fracassos
que temos para contar.
Viram televisão, andaram na multidão,
leram revistas e jornais,
ficaram a par dos mexericos no ar
e mais chocados ficaram
quando ligaram o rádio
à procura de ouvirem
a música que se faz por cá,
é que foi muito difícil
encontrar música portuguesa,
na elite das nossas rádios
o que é português não presta.
A ideia com que ficaram
de tudo o que apreciaram
foi que, por estranho que pareça,
nós não gostamos de nós!
O que viram foi uma nação adormecida,
dividida em ideias mesquinhas,
em um "salve-se quem puder"
sem destino, sem vontade própria, sem saída.
Laura Alves surpreendida
confessava a Dona Amélia
que estava louca por voltar ao Além,
pois este lugar já não era o dela.
Assim, depois de três dias
pesquisando o ambiente
decidiram ir embora
o mais depressa possível
e depois no paraíso,
numa sala reservada
para a expedição terrestre,
contaram as suas aventuras
e todos juraram então
ficarem sempre onde estão
e não voltarem à Terra.
É que agora o que era arte
é coisa desconhecida,
é uma palavra perdida
no nosso inconsciente
e até a própria cultura
anda à beira da loucura
e não é mais inteligente.

Fernando Girão

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