quinta-feira, junho 30, 2005

125 Azul

Foi sem mais nem menos
Que um dia selei a 12 5 azul
Foi sem mais nem menos
Que me deu para abalar sem destino nenhum

Foi sem graça nem pensando na desgraça
Que eu entrei pelo calor
Sem pendura que a vida já me foi dura
P'ra insistir na companhia

O tempo não me diz nada
Nem o homem da portagem na entrada da auto-estrada
A ponte ficou deserta nem sei mesmo se Lisboa
Não partiu para parte incerta
Viva o espaço que me fica pela frente e não me deixa recuar
Sem paredes, sem ter portas nem janelas
Nem muros para derrubar

Talvez um dia me encontre
Assim talvez me encontre

Curiosamente dou por mim pensando onde isto me vai levar
De uma forma ou outra há-de haver uma hora para a vontade de parar
Só que à frente o bailado do calor vai-me arrastando para o vazio
E com o ar na cara, vou sentindo desafios que nunca ninguém sentiu

Talvez um dia me encontre
Assim talvez me encontre

Entre as dúvidas do que sou e onde quero chegar
Um ponto preto quebra-me a solidão do olhar
Será que existe em mim um passaporte para sonhar
E a fúria de viver é mesmo fúria de acabar

Foi sem mais nem menos
Que um dia selou a 125 azul
Foi sem mais nem menos
Que partiu sem destino nenhum
Foi com esperança sem ligar muita importância àquilo que a vida quer
Foi com força acabar por se encontrar naquilo que ninguém quer

Mas Deus leva os que ama
Só Deus tem os que mais ama

Luís Represas

quinta-feira, junho 23, 2005

Ponto de Orvalho

Nem se chega a saber como
um inusitado sorriso,
um volver de olhos doentes,
um caminhar indeciso
e cego por entre as gentes,
chamam a si, aglutinam,
essa dor que anda suspensa
( e é dor de toda a maneira )
como o vapor se condensa
sobre núcleos de poeira.
É essa angústia latente
boiando no ar parado
como um trovão iminente,
que em muda voz se pressente
num simples olhar trocado.
Essa angústia universal,
esse humano desespero,
revela-se num sinal,
numa ferida natural
que rói com lento exagero.
Não deita sangue nem pus,
não se mede nem se pesa,
não diz, não chora, não reza,
não se explica nem traduz.
A gente chega, respira,
olha, sorri, cumprimenta,
fala do frio que apoquenta
ou do suor que transpira,
e pronto, sem saber como,
inútil, seco, vazio,
cai na penumbra do rio,
emerge, bóia, soçobra,
fácil e desinteressado
como um papel que se dobra
por onde já foi dobrado.

António Gedeão

sábado, junho 18, 2005

As Palavras Que Te Envio São Interditas

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.

Eugénio de Andrade

terça-feira, junho 14, 2005

Ensina-me a namorar

Um romance de 29 e-mails é algo de inovador na literatura portuguesa e esse é o traço que caracteriza o enredo do novo e sublime livro de António Garcia Barreto. Adoptanto a técnica tão actual dos e-mails, que as diversas figuras desta obra literária enviam umas às outras, o autor utiliza uma linguagem altamente cuidada e idónea de descrever belas cenas de ficção.
"Ensina-me a namorar" relata a tragédia vivida pelo alferes miliciano João Doodler de Sousa que, ao conhecer Julieta na capital portuguesa, não revelou o seu nome verdadeiro aquando partiu para a guerra colonial, afirmando que se chamava Romeu Duchamp. Já perecido sem se reencontrar com a sua amada, João Doodler de Sousa revela, em e-mails enviados para um anjo do Céu, as sequelas do flagelo daqueles que viveram tempos inóspitos a combater na guerra do Ultramar, possivelmente, hoje, considerada como o opróbrio da sociedade quotidiana em que sobrevivemos, segundo as palavras da própria personagem, enquanto fazia o relatório da sua "vida terrena": “A participação dos soldados portugueses na guerra colonial não pode ser motivo de vergonha, conquanto possa ser vergonha a política que os conduziu a tal situação e um tanto ligeira a que levou ao processo de descolonização”.
O intróito do romance deve-se ao desafio proposto por um amigo de Sampaio Bessa, detentor de uma empresa de prestações de serviços nas áreas de estudos de mercado e de gestão de recursos humanos e detective de boas causas, o qual deveria desvendar o desaparecimento do antigo namorado de Julieta, João Doodler de Sousa. No desenrolar do romance, Sampaio Bessa e Julieta vivem uma história de amor, onde ficou célebre a frase que intitula a obra:"Ensina-me a namorar".
Após esta sinopse, convido-vos vivamente a ler o novo romance de António Garcia Barreto, publicado pela editora portuense "Campo das Letras".

sexta-feira, junho 10, 2005

Esparsa Sua ao Desconcerto do Mundo

Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E, para mais m'espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado:
Assim que, só para mim
Anda o Mundo concertado.

Luis Vaz de Camões

Ai, Portugal, Portugal,
Por onde me levas?

terça-feira, junho 07, 2005

Ao Canto da Noite

Ao canto da noite
Esperava o dia
Que fossem horas de a ver chegar

Ao canto da noite
Já desesperava
Em todos os cantos que deixou para trás

Esperava como dia
Como tarde
Ou até como amanhã

Esperava ao ver-se ontem
Já levado em braços
Pelo pôr do Sol

Ao canto da noite
Já ninguém ficava
A fingir que faz poemas a ninguém

Ao canto da noite
Já ninguém deixava
Fugir desabafos por perder alguém

Só quem passasse
E olhasse para o nada
Via um vulto que se esconde

Por trás do nada
O dia espera
Como escravo do horizonte

Espera
No fundo do canto da noite
Foge
Para longe do canto da noite

Ao canto da noite
Pensava o dia
Que se podia um dia apaixonar

Se houvesse outro dia
Que para ele olhasse
E se deixassem os dois abandonar

Ao canto de uma noite
Sem ter medos
Sem ter regras a cumprir

Depois fugir do canto
Sem destino
Sem ter rotas a seguir.

Já se ouviu contar
Que nesse canto mora a alma
De outras tantas almas
De outros cantos
De outras noites

Luís Represas

sexta-feira, junho 03, 2005

O Revólver

Numa sociedade inexorável, em que tudo parece ser frívolo, geram-se, por vezes, situações nevrálgicas que melindram os âmagos dos seres humanos. Já não bastava o stress ignóbil que habita no turbilhão do trabalho do dia-a-dia, há quem decida dilatar os impostos, fustigando indubitavelmente a maioria dos lassos contribuintes e corroborando o fausto dos individuos opulentos. E, por não existir um Robin dos Bosques para usurpar aos ricos para legar aos pobres, naturalmente que isto origina uma alteração inevitável dos sistemas nervosos das pessoas e, como é complicado gerir determinadas situações, provoca convulsão e desavenças inusitadas nos seus lares. Logo, não há silêncio nem pensamento que valha nestas horas derradeiras, já que as pessoas tendem a contundir ingenuamente aqueles que mais amam.
No entanto, só o Amor destrói o revólver da sociedade que nos intimida... Talvez a solução destes teoremas complexos seja a inutilização do mal que se escuta ou do mal que se vê, deixando a escumalha que nos macula fora do lar e imunizando nele o Amor que sempre poderá servir-nos como armadura.

Quando nos disparamos do que somos
quando nos encantamos e seguimos
o contido estampido do silêncio
que nos rebenta dentro dos ouvidos
a corola pistola o suspiro do tiro
já não nos basta a bala da palavra
o gatilho dos dedos
o alvo do sentido.

Trincamos uma pétala de cor
e matamos no cheiro duma flor
cinco sentidos unidos.

José Carlos Ary dos Santos