sexta-feira, dezembro 24, 2010

Natal dos Simples

Vamos cantar as janeiras,
Vamos cantar as janeiras,
Por esses quintais adentro vamos
Às raparigas solteiras.

Vamos cantar as janeiras,
Vamos cantar as janeiras,
Por esses quintais adentro vamos
Às raparigas casadas.

Vira o vento e muda a sorte,
Vira o vento e muda a sorte,
Por aqueles olivais perdidos
Foi-se embora o vento norte.

Muita neve cai na serra,
Muita neve cai na serra,
Só se lembra dos caminhos velhos
Quem tem saudades da terra.

Quem tem a candeia acesa,
Quem tem a candeia acesa,
Rabanadas, pão e vinho novo,
Matava a fome à pobreza.

Já nos cansa esta lonjura,
Já nos cansa esta lonjura,
Só se lembra dos caminhos velhos
Quem anda à noite à ventura

Texto de José Afonso

quinta-feira, dezembro 23, 2010

Legado pelo Inverno

Inverno não era mais do que um estrangeiro que estagiava em Lisboa durante três meses na era habitual e andava sempre ao ritmo do pêndulo de um relógio. Anunciou a sua chegada com o seu jeito genuíno, despedindo-se do Outono e assustando a velha cigarra. Parece que degustava o primeiro dia que passava no âmago lisbonino.
No dia seguinte, acordou tarde. Sentia-se um torpor indolente. Pegou na pequena alcofa que acarretou do Universo e abraçou o dia. Deambulou no Chiado que estremecia ao vê-lo passar e parou n’A Brasileira, onde cavaqueou com o poeta que se deleitava, como sempre, sentado à mesa da esplanada:
- Falta cumprir-se Portugal! – dizia incessantemente o poeta.
- Deves ter razão, caro amigo – respondia, desta forma, o Inverno.
O dia anoiteceu e o Inverno abandonou o poeta que insistia na mesma afirmação. Desceu pela Rua Garrett em direcção ao Rossio e passou as últimas horas na Avenida da Liberdade.
De madrugada, entrou sorrateiramente na maternidade, sibilando uma canção de embalar. Colocou minuciosamente a pequena alcofa numa cadeira junto à mesa de cabeceira do quarto que, fortuitamente, escolheu e pousou o rebento nos longos esteiros de uma mulher.

Texto de João Garcia Barreto

quinta-feira, dezembro 02, 2010

Quando se Ama o Porto


Ansiava-te, ao som de Abrunhosa,
Quando o carro abraçou o Porto
Que, sob a ponte, açulava o anelo
Que persistia no dia já morto.
Esperei-te na leda madrugada
Que vacilava sobre o rio que dormia
E, todavia, devaneava na calçada
Sob a Lua que, no céu, se desentedia.

E a tez macia da cidade adormecida...
E os esteiros de cetim sobre mim
Em plena avenida...

Quando se ama o Porto,
Dilata-se, na noite, o espaço
E quem anseia um beijo absorto
Sente, sempre, perto o regaço.

Despertei, ao timbre de Abrunhosa,
Quando a manhã, de novo, se abriu
Que, sob a neblina, espelhou a luz
Na cidade, onde faz sempre frio.
Saboreei-te no canapé do Majestic
E, depois, no Barco para a Afurada,
Onde troquei o Porto pela viagem
Do eterno sonho na madrugada.

E a tez sublime da cidade já despida...
E os esteiros de cetim sobre mim
Em plena avenida...

Quando se ama o Porto,
Dilata-se, na noite, o espaço
E quem anseia um beijo absorto
Sente, sempre, perto o regaço.

Texto e Fotografia de João Garcia Barreto