segunda-feira, novembro 29, 2004

Cúmplices

A noite vem às vezes tão perdida
E quase nada parece bater certo
Há qualquer coisa em nós inquieta e ferida
E tudo o que era fundo fica perto

Nem sempre o chão da alma é seguro
Nem sempre o tempo cura qualquer dor
E o sabor a fim do mar que vem do escuro
É tantas vezes o que resta do calor

Se eu fosse a tua pele
Se tu fosses o meu caminho
Senenhum de nós se sentisse nunca sozinho

Trocamos as palavras mais escondidas
Que só a noite arranca sem doer
Seremos cúmplices o resto da vida
Ou talvez só até amanhecer

Fica tão fácil entregar a alma
A quem nos traga um sopro do deserto
O olhar onde a distância nunca acalma
Esperando o que vier de peito aberto

Se eu fosse a tua pele
Se tu fosses o meu caminho
Se nenhum de nós se sentisse nunca sozinho

Mafalda Veiga

À amizade, por ser genuína...

sábado, novembro 27, 2004

Chave dos Sonhos

Luz sai da frincha, é manhã
Sei que o dia já desarvora
Chave dos sonhos na mão
Olho-te e vais embora

Sais pela rua velo
Sinto a brisa do teu corpo perto
Chave dos sonhos guardei
No quarto já deserto

Passei a noite em claro
Passei p'la noite em ti
E abri com a chave dos sonhos
A porta e a varanda que em sonhos abri

São mais confusas agora
As imagens que em ti eu tocava
Eram do sonho ou de olhar
O que o prazer mostrava ?

Chave dos sonhos na mão
Entrarei em qualquer fechadura
P'ra lá da porta, o melhor
É sempre da aventura

Guardo com a chave dos sonhos
Segredos que o corpo merece
Se alguém não quis arriscar
Então que o não tivesse

Ontem arriscaste mais
Do que uma simples coisa exigia
Deste-me a chave dos sonhos
O caos e a harmonia

Sérgio Godinho

segunda-feira, novembro 22, 2004

Dissipação

Um olhar vago
Como um dia que resiste ao dia à luz da noite.
A beleza por detrás do olhar vazio
E a espera morta nos lábios.
Nas páginas brancas
Um choro de chuva branca
Pela tua voz parada.
Um medo pela palavra proferida
Quando anoitece.
E dentro dos meus dedos,
As palavras para te chorar
Quando não estás.
A escuridão dentro da escuridão de um beijo
Em que o toque foi, apenas, ensejo de te ver...

Vanessa Pelerigo

Obrigado pela eterna amizade, Princesa de Éden

Poema gentilmente oferecido pela autora.

quinta-feira, novembro 18, 2004

Fada do Tempo

Desvendei-te na friagem da noite, quando as asas se quebraram de tanto sobrevoar as lacunas veladas no Mundo. Amainaste os vendavais que pareciam infindáveis e aconchegaste-me no regaço, onde ainda teimo em repousar. Transfiguraste-me… Inverteste a dolência de um anjo enfadonho, emancipando-o com o alento que transborda de ti…
Talvez sejas dona do tempo e saibas inverter sortilégios… De que terno sonho vieste? De que eterno conto surgiste?
Insurgiste-te nos nefastos pesadelos, que me corroíam inexoravelmente, cobrindo-me com um invólucro feérico. Cristalizaste o tempo no âmago de uma espécie de actor ou de poeta do Amor, oferecendo-lhe hipérboles, metonímias e metáforas sem fim. Com as tuas asas, sou dono do céu… De que noite irrompi? De que sonho renasci? De ti, Fada do Tempo…

Obrigado, Mãe…

quarta-feira, novembro 10, 2004

O Relógio ( adereço conceptual para usar no pulso )

Um poeta é um ser pródigo, que transporta no âmago a filantropia. Engendra as mais belas histórias, ejaculando palavras no tempo... Decerto que é imortal... Todas as suas palavras respiram num pedaço de papel eterno...


Pára-me um tempo por dentro
passa-me um tempo por fora.

O tempo que foi constante
no meu contratempo estar
passa-me agora adiante
como se fosse parar.
Por cada relógio certo
no tempo que sou agora
há um tempo descoberto
no tempo que se demora.

Fica-me o tempo por dentro
passa-me o tempo por fora.


José Carlos Ary dos Santos

sábado, novembro 06, 2004

Excessos de um Artista

Devo admitir que "estigma" é um termo muito forte para se aplicar a quem é um símbolo da música portuguesa, embora não quisesse com isso depreciar o artista mencionado no post anterior. De facto, Pedro Abrunhosa marcou intensamente o desenvolvimento da canção nacional, que necessitava de ser remodelada, já que se tornava uma constante imutável ( vira o disco e toca o mesmo...). Em Portugal, só se escutava os mesmos compositores credenciados, os únicos que se dignavam a pugnar contra a "pimbalização" da música nacional. Ainda me recordo da irreverência dos GNR e dos Mão Morta e do infeliz desvanecimento de grandes bandas como os Heróis do Mar, os Jáfumega e os Sétima Legião. Enfim, alguém tinha de incitar a música nacional, o que os outros artistas não estavam a conseguir...
À medida que o tempo passa, é mais notória a cicatriz marcada pelo desmesurado artista. Ora vejamos... O mercado abriu-se... D'Weasel, Ornatos Violeta, Yellow W Van, Toranja, Blind Zero, Belle Chase Hotel, David Fonseca e os Silence 4 insurgiram-se no panorama musical português,corroborando o que Pedro Abrunhosa e outros compositores defendiam. No entanto, a "pimbalização" continua a fazer estragos... Foi, neste sentido, que utilizei o termo "estigma"...
"Como uma ilha" é um momento invertido em forma de canção, pois acredito que o sujeito poético quis transmitir a segurança ao destinatário do poema, que se fragilizava na solidão. No fundo, acredito que ambos se encontram inseguros, embora considere que o sujeito poético saiba simular perfeitamente, já que "o poeta é um fingidor"...
Contudo, admito que tenho um dom para imiscuir as coisas e, torná-las, por isso, promíscuas. São os "excessos de um artista" como diria Carlos Tê...

A quem visita regularmente este espaço... Obrigado.

sexta-feira, novembro 05, 2004

Como uma ilha

Pedro Abrunhosa é um dos artistas mais carismáticos da actualidade, que se digna a digladiar pela música que se cria em Portugal. Tem um currículo invejável e o dom de eternizar momentos invertidos em forma de canção. "Como uma ilha" é só um exemplo do que pode ser uma canção perene criada por um estigma da música actual em Portugal...


Tu és todos os livros,
Todos os mares,
Todos os rios,
Todos os lugares.
Todos os dias,
Todo o pensamento,
Todas as horas
O teu corpo no vento.
Tu és todos os sábados,
Todas as manhãs,
Toda a palavra
Ancorada nas mãos.
Tu és todos os lábios,
Todas as certezas,
Todos os beijos
Desejos, princesa.

Como uma ilha,
Sozinha...

Prende-me em ti,
Agarra-me ao chão,
Como barcos em terra
Como fogo na mão,
Como vou esquecer-te,
Como vou eu perder-te,
Se me prendes em ti,
Agarra-me ao chão,
Como barcos em terra,
Como fogo na mão,
Como vou eu lembrar-te
Se a metade que parte
É a metade que tens.

Tu és todas as noites
Em todos os quartos,
Todos os ventos
Em todos os barcos.
Todos os dias
Em toda a cidade,
Ruas que choram
Mulheres de verdade.
Tu és só o começo
De todos os fins,
Por isso eu te peço
Fica perto de mim.
Tu és todos os sons
De todo o silêncio,
Por isso eu te espero
Te quero e te penso.

Como uma ilha,
Sozinha...


Pedro Abrunhosa

quarta-feira, novembro 03, 2004

Que Amor não me engana

José Afonso é a referência que detenho para manifestar tudo o que armazeno no meu âmago estrógeno. Insurgiu-se num regime totalitário, onde dissipou inúmeras baladas que criou com a sua voz peculiar ladeada da sua fiel guitarra... Por onde caminhas, grande Zeca? Tu, que ansiavas a revolução como ninguém.... Eu, que não te conheci... Assim, o tempo não anuiu...


Que amor não me engana
Com a sua brandura
Se da antiga chama
Mal vive a amargura...

Numa mancha negra,
Numa pedra fria,
Que a amor não se entrega
Na noite vazia...

E as vozes embargam
Num silêncio aflito.
Quanto mais se apartam,
Mais se ouve o seu grito...
Muito à flor das águas,
Noite marinheira,
Vem devagarinho
Para a minha beira...

Em novas coutadas
Junto de uma hera,
Nascem flores vermelhas
Pela Primavera.

Assim tu souberas,
Irmã cotovia,
Dizer-me se esperas
O nascer do dia...

E as vozes embargam
Num silêncio aflito,
Quanto mais se apartam,
Mais se ouve o seu grito...
Muito à flor das águas,
Noite marinheira,
Vem devagarinho
Para a minha beira...


José Afonso